terça-feira, 27 de outubro de 2009

Histórias reais 1

Foram tantos, conto com pouco mais que duas mãos mas parece-me pouco para vos dizer o tempo que dormi debaixo do mesmo tecto, mesmo que nem sempre na mesma cama, que aquele monstro.
Ninguém me obrigou, a verdade é que tinha apenas vinte anos quando o escolhi e aos vinte anos achamos que já sabemos muito da vida e que já passamos tudo o possível e imaginário só porque deixámos para trás a adolescência, mas acreditem que não. Aos vinte anos começa a altura de fazermos as escolha que, por culpa de alguém, achamos que são para toda a vida e foi exactamente convencida disso mesmo que na igreja, onde já se tinham casado os meus avós, os meus pais e a mais velha das minhas irmãs que de mãos dadas com ele repetia alegre as palavras do padre e que ninguém me estragasse aquele, que pensava eu, o momento mais feliz da minha vida.
Ainda hoje não consigo perceber como é que alguém se transforma de tal maneira, ou se na verdade ele sempre foi o mesmo e apenas me iludiu nos primeiros tempos, também já pensei se a culpa foi minha… os anos passaram, perdi o encanto de menina e desleixei-me com ele a minha vida desde aí passou-se sempre à volta dos meus filhos e ele era só mais uma obrigação. Já a minha mãe dizia quando o meu pai chegava tarde a casa “uma mulher tem de aceitar o seu marido tal qual ele é!”, dizia-o com convicção e de tal forma que durante vinte e três anos aceitei o meu tal qual ele é e por pouco não morri.
A minha vida mudou com o nascimento do meu primeiro filho, nós não o planeamos mas logo que soube a minha felicidade era inexplicável ao lado dele que irritado com o descuido, que considerava ser culpa minha, se afastou de mim como da noite para o dia. Vivi sozinha a felicidade de vir a ser mãe e num teatro em que fora das quatro paredes que eram os meus dias fingia ter o marido mais dedicado do mundo, talvez convencer os outros disso me preenchesse por instantes e assim passei os quase 9 meses em que esperei pelo meu filho. Quando ele nasceu, era tão bom tê-lo que nada me conseguia desconfortar e acho que foi isso mesmo que mais o agitou, a indiferença à indiferença dele, os gritos, o vinho, as más horas, tudo para me irritar para que eu chorasse e lhe dissesse que aquela criança era um bicho mau do qual tinha a culpa. Mas fiz da presença dele apenas mais uma boca para comer, e quando já não o ouvia, já não ralhava, e simplesmente calava todas as suas porcarias sentiu-se insignificante ao ponto de usar a força para que eu tivesse necessariamente de dar por ele, de reagir. Com os anos que passavam, nasceu o meu filho mais novo, outro "acidente", e aí a convivência com ele tornou-se mesmo um tormento.
Hoje sei que errei, mas sair daquela casa, ficar sem sustento, dizer aos meus filhos que tinham uma mãe solteira e teriam de dizer isso aos amigos, o desgosto dos meus pais… atormentava-me ao ponto de ter aguentado tudo, se não aguentei tudo pouco me faltou, nem sei se vale a pena explicar-vos, coisas tão feias que nem um animal merece. Precisei de vinte e três disto para ir parar ao hospital entre a vida e a morte, desta vez não havia nenhuma desculpa que pudesse dar e houve alguém que denunciou o meu estado, o meu lastimável estado, e quando acordei de sete dias em coma com os meus filhos ao lado soube desde logo que ele estava preso e que a minha decisão de o denunciar ou não decidiria o seu futuro nos próximos anos a longo prazo.
Enquanto os ouvia “mãe, ele tem de ter finalmente o que merece, quase te matou!” só me lembrava da minha querida mãe sentada no sofá castanho com uma lágrima no canto do olho “uma mulher tem de aceitar o seu marido tal qual ele é!”.
Decidi que ninguém merecia roubar-me o melhor que tenho, ver os meus filhos crescer.

2 comentários:

  1. Gostava de vos elogiar pelo texto que está muito bem escrito, e que transmite de forma clara o testemunho de muitas mulheres que são vítimas de violência doméstica. É sem duvida um problema que merece o máximo de importância, e espero então que com este trabalho consigam sensibilizar e alertar as pessoas. Contem com a minha aprovação do blog ;)

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  2. muito bem, muito bem. bonito trabalho que têm aqui. continuem assim... =)

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